Vedas: filosofia do sagrado
A linguagem é a ferramenta da qual se vale o homem para satisfazer suas necessidades de representação dos fatos do mundo. Permite ao indivíduo produzir ou provocar determinada reação por parte de seu interlocutor.
A forma mais antiga de que se tem registro, para se conhecer e/ou preservar as culturas dos povos e suas histórias é a oralidade: o que se ouviu dos próprios pais e o que lhes foi contado por seus avós; a história ouvida pelos avós, contada pelos bisavós e assim por diante. Mesmo que não haja qualquer registro escrito, mesmo que não se tenha na estante de casa um livro com essas histórias ancestrais, nem assim as pessoas deixam de conhecer e de se encantar pelos mitos, contos, ritos e ensinamentos. A cultura da oralidade está no DNA de todas as sociedades.
Como em tantas outras áreas, o uso da língua com finalidades práticas precedeu a uma análise mais rigorosa e científica, no sentido de formalizar esse mesmo uso. Na Índia antiga, por exemplo, a necessidade maior sempre foi a de manter viva a pronúncia correta dos textos sagrados ancestrais, em sânscrito, o que justifica aetimologia do termo. Talvez por isso, conforme afirma Weedwood (2002), a construção de um sistema de língua sânscrita tenha acontecido somente no século V a.C., com a gramática de Panini, apesar de seu uso ser incalculavelmente anterior a esse período.
A despeito do encantamento que a cultura indiana desperta desde sempre no Ocidente, há nela também um bojo de emoções e sentimentos, nem todos “elevados”. Se se fizer uma leitura e estudo atentos de alguns textos clássicos da tradição hinduísta, será possível encontrar, sem esforço, muitos elementos próximos a uma discussão filosófica existencialista – própria do Ocidente -, já que neles se observam a dor e o sofrimento. Então, em uma primeira etapa do pensamento hindu, é possível observar a presença de certo pessimismo – marca, no Ocidente, dessa corrente filosófica. Mas, diferentemente desta, o aparente “pessimismo” da tradição indiana tem curta duração, por fazer parte de uma discussão maior e bastante integrativa da espiritualidade.
Usa-se o pessimismo como um trampolim para suplantá-lo, propriamente. Analisam-se as causas e, reconhecendo sua natureza, elas podem ser dissipadas.
Esses textos relacionados à mística do sagrado compõem uma literatura farta, e são categorizados de acordo com sua natureza. Segundo Saraswati (2006), a biblioteca de textos do Hinduísmo era (e ainda é) dividida em duas categorias predominantes: śruti e smriti.
Śruti é um adjetivo, uma declinação dosubstantivo śrutam, que significa‘ouvido’, ‘distância’. Śruti, portanto, é ‘aquilo que foi ouvido’, no sentido de algo que foi revelado. Todo esse conhecimento foi compilado em quatro grandes livros do Hindusímo, chamados Vedas: Rig Veda, Sama Veda, Yajur Veda e Atharva Veda.
Então, sempre que se encontrar o termo śruti, ele estará se referindo àquilo que foi escutado, no sentido daquilo que foi revelado. Os Vedas representam essa parte da tradição considerada revelação, já que foram recebidos, foram escutados por grandes mestres em estado profundo de meditação, de contemplação. Dessa tradição “do que foi ouvido” é que vem a preocupação em se entoar os textos com perfeição, para que sejam repetidos como foram revelados.
Seguindo a abordagem de Saraswati (2006), temos que śruti compõe os quatro Vedas. Cada um dos Vedas, de sua vez, obedece a uma estrutura interna, composta detextos chamados samhitas, brahmanas, aranyakas, upanishads e kalpasutras.
Samhitas são os textos elaborados em períodos mais antigos, são as partes maisantigas dos vedas. Resumem-se a hinos dedicados aos deuses védicos, bem como fórmulas e invocações compõem esses textos.
Os brahmanas, de sua vez, são praticamente manuais a serem seguidos pelos sacerdotes. Estão aqui instruções bastante detalhadas sobre rituais, práticas, gestossagrados e atos realizados em cerimônias.
Textos concomitantes aos brahmanas, mas em oposição a eles, são chamados aranyakas. Conhecidos como os “textos das florestas”, enfatizavam o EU, já que é nointerior do homem – segundo os meditadores que compilaram esses textos – que residem os deuses e a Verdade. Logicamente, se esses textos se opunham aos brahmanas, opunham-se também aos samhitas.
As Upanishads promoveram uma importantíssima abertura no pensamento hindu, pois, em sua maioria, foram criados à parte do círculo dos sacerdotes. De acordo com Oliveira(2016):
“Na história do pensamento hindu, haveria dois momentos distintos: o primeiro seria o período védico (em que se constitui a base da cultura hindu). Nesta etapa o pensamento religioso enfatizava o ritualismo, a cosmologia e a objetividade. A segunda fase seria a era das Upanishads. Neste momemto, e religiosidade se tornou mais introspectiva, psicológica e subjetiva.”(p.6)
As Upanishads, então, são textos filosóficos que enfatizam a identidade entre o Absoluto e o Ser individual. Na visão de Feuerstein (2001), “os Upanishads introduziram o ideal de um ritual interno – um ‘sacrifício interior’ – associado à renúncia das coisas do mundo.” (p.104)
Completando a estrutura interna dos Vedas, há os kalpasutras. São textos curtos, compostos em uma forma especial de escrita, chamada sutra. Versavam sobre os mais variados temas, da gramática à astrologia, da geometria às leis sociais.
Além desses textos, Tinoco (2005) enfatiza o Mahabharata e o Ramayana, dois poemas de grande importância para o estudo e entendimento da Filosofia da Índia. O primeiro, composto de mais de 100 mil versos, narra a batalha entre Pandavas e Kauravas – duas famílias com laços de parentesco próximos – pela posse de território. Os momentos que antecedem a batalha em si, conhecida como Batalha de Kurukshetra (campo dos Kurus, em sânscrito), compõem o trecho mais famoso do poema, conhecido como Bhagavad Gita (“A Canção de Deus”). Já no Ramayana, outro poema extenso (24 mil dísticos, ou seja, 48 mil versos), conta-se a batalha entre o Rei Rama contra o demônio Ravana. Tinoco (2005) diverge de Saraswati (2006) ao sugerir fortemente que o Mahabharata relata a batalha entre arianos e povos autóctones do Vale do Indo. Na visão de Saraswati, a batalha seria entre dinastias arianas, sem a presença de outro(s) povo(s).
Apesar de esses cinco tipos de textos estruturarem os Vedas, os quatro Vedas trazem conteúdos distintos. O Rig Veda, por exemplo, o mais antigo dos quatro, traz um conjunto de hinos muito sofisticados, escritos em um sânscrito muito antigo, em uma linguagem altamente simbólica. Além disso, neles estão inseridas as primeiras inquietações feitas pelo homem desse período acerca das questões profundas da vida: a origem da criação, da natureza do universo, entre outras.
O Sama Veda traz um conjunto de ensinamentos, incluindo as regras de canto e uma infinidade de melodias. Depois, no Yajur Veda, fala-se sobre o dharma humano. Dividido em Negro (por conter informações e ensinamentos complexos, desacompanhados de orientações que os explicassem) e Branco, contém fórmulas e palavras que os sacerdotes sussurravam durante a execução dos ritos. O Atharva Veda é o menos antigo dos quatro e se caracteriza como uma coleção de orações e hinos versificados, alguns de um caráter mágico ou alegórico, outros lidando com a cosmogonia, além de muitas coisas relacionadas à Medicina.
Anteriormente, afirmamos que a biblioteca de textos do Hinduísmo é dividida em duas categorias principais: śruti e smriti. Encerrando a parte relativa a śruti, exposta até aqui, resta-nos apresentar a parte relativa a smriti.
Smriti significa ‘memória’, ou seja, aquilo que foi lembrado. Essa categoriaorigina uma vasta literatura, pois, além dos textos que compõem originalmente essa biblioteca, há também os comentários desses textos. Tinoco, tal qual Saraswati, apresenta esse bloco composto de 5 classes de textos, que tinham o objetivo principal de preservar o conhecimento védico: shastras, puranas, agamas, darshanas e itihasas (ou itiharas). O mais importante a enfatizar aqui é que os agamas e tantras nãoestão diretae necessariamente vinculados à tradição dos Vedas; por outro lado, os textos épicos (Mahabharata e Ramayana) e puranas não são os Vedas, mas são reconhecidos como parte dessa tradição védica.
Os dharshanas, as escolas de pensamento que surgem na Índia, são resultado de um olhar específico para os Vedas, a partir de grandes mestres e sábios. Segundo Tinoco (2005)12, os Vedas figuram, nesse sentido, como uma linha divisória entre o que ficou conhecido como Pensamento Ortodoxo Indiano e Pensamento Heterodoxo.
Purva-Mimamsa – uma das seis escolas principais do pensamento ortodoxo – e(ao lado de Uttara-Mimamsa [ou Vedanta], conforme afirma Feuerstein (2001)) não trazem outro conteúdo que não a interpretação das partes anteriores (purva) quanto posteriores (uttara) dos textos védicos. O Vedanta é a escola de maior influência na tradição hinduísta.
Samkhya e Yoga figuram como escolas muito próximas, a ponto de -equivocadamente – ser aquela considerada o aspecto teórico desta. Na verdade, duas são as diferenças principais entre elas: a doutrina e o método. Samkhya busca na talidade o caminho para a libertação, ao passo que o Yoga se vale de práticas de renúncia e técnicas superiores de meditação para atingir o mesmo fim.
Vaiśeśika é escola da discriminação, da distinção entre as coisas do mundo.Basicamente, afirma a composição do universo fenomenal a partir de seis categorias: substância, qualidade, ação, generalidade, individualidade atômica ou separatividade e coerência. A libertação do Ser se daria pelo conhecimento da verdade dessas categorias.
Nyaya, a mais tardia das escolas, surge num momento de profusão de ideias equestionamentos. Seus textos defendem a possibilidade de se atingir a liberação ou o “absoluto” através do argumento lógico e da mente racional, ou seja, as artes retórica e lógica eram a base dessa corrente. Talvez por questões de contemporaneidade, Nyaya se aproxime de alguns escolas do Pensamento não-ortodoxo da época. A tendência, nesse período, era muito mais questionar a tradição dos Vedas do que concordar cegamente com eles. Dentre essas escolas, destacam-se o Budismo e o Jainismo.
A conclusão primária que se atinge a partir do estudo desses autores é que, seja por uma via ou por outra, todas as escolas beberam da mesma fonte ancestral, até formarem sua própria identidade e personalidade. Seguindo caminhos como escolas/ tradições/religiões independentes, acabaram por preservar o ideal de tolerância presente (ao menos aparentemente) nas civilizações da região Vale do Indo. Numa região em que tantas religiões nasceram, isso provavelmente foi uma condição fundamental para sua existência e manutenção.
O sânscrito – reproduzindo o fenômeno comum às línguas naturais – foi, a um só tempo, elemento de unificação política, mas também de estratificação social. Mas foi, acima de tudo, instrumento de registro de uma cultura singular a qual, muito embora tenho tido desdobramentos e sofrido ocidentalizações, guarda, em seu panteão ancestral, riquezas sem precedentes.
Glossário:
Vedas – hinos, poemas, cantos, revelações, recebidas por grandes Rishi.s em estado demeditação profunda, Era dito que eles ouviram a voz de Deus.
Rishi.s: sábios que receberam por meio de meditação todo o conhecimento acerca doser humano, compilado em volumes chamados Vedas.
Dharma: palavra polissêmica. No contexto de uso neste texto, significa “missão”,“responsabilidade”, “papel social”.
Moksha: a libertação do sentimento de limitação, o sentimento de ausência desofrimento. O objetivo do Yoga Darshana, bem como de todos os outros darshana.s.
Referências bibliográficas
FEUERSTEIN, G. A Tradição do Yoga. 2º ed. São Paulo: Pensamento, 2001.
HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
SARASWATI Aghorananda. Mitologia hindu. São Paulo: Madras, 2006.
TINOCO, Carlos Alberto. As Upanishads do Yoga. São Paulo: Madras, 2005.
WEEDWOOD, Barbara. História Concisa da Linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2002.