Índia: muito além do incenso
A História da Índia se confunde com a própria história da humanidade. Provavelmente nenhuma sociedade, nenhuma comunidade desperte tanto misticismo e admiração na cultura ocidental quanto o legado hindu. São milênios de tradição, de uma cultura que alimenta os que dela se aproximam com algo muito próprio, muito particular: uma “Filosofia do Sagrado”. Segundo Feuerstein (2006), “(…) vem da Índia a maior contribuição à espiritualidade mundial, inspirando inclusive muitas nações ocidentais, tão carentes nesse sentido.” (p.99).
Ao contrário do Ocidente, em que a Filosofia – ao menos hodiernamente – se anuncia praticamente como uma separação entre o metafísico e a religião, na Índia, essa separação nunca existiu – uma hipótese razoável para a razão de tanta admiração por parte das culturas ocidentais, já que o ser humano carrega uma inclinação natural, uma necessidade de pertencimento a algo ou a algum grupo, ainda mais quando esse grupo está apoiado no caminho do sagrado, ligado à espiritualidade. A propósito, é esta a meta na perspectiva hindu: atingir a experiência do êxtase, o grau máximo da experiência mística. Há que se considerar, no entanto, que nem tudo são flores, nem tudo se apresenta sob um espectro harmônico e equânime, a começar pela própria história de formação desse subcontinente.
Um país? Um continente? Que é a Índia?
Originalmente, essa região incluía, além da própria Índia, o que hoje é o Paquistão e o Afeganistão. Não existia um conceito de “Estado” ou “Nação” como hoje existe. Além de novo, esse é um conceito que ainda não foi completamente assimilado pelas culturas orientais. A ideia de uma língua específica e de uma cultura padronizada é uma coisa um pouco “forçada”, indigesta; e na Índia mais ainda, por não ser propriamente um “país”.
Desde sempre, podemos entender a Índia como uma reunião de diversas culturas, com algo em comum (Vedas). Ainda hoje há diversos idiomas oficiais (22, segundo a Unesco) mais alguns admitidos. O olhar ocidental não percebe essas diferenças, afinal, lá é “tudo igual”: as mulheres usam sari, todos comem pimenta, usam incenso, e por aí vai. Se se pensa assim ainda hoje, imagine há muitos anos. O que era a vida naquela região há 5 mil, 7 mil anos?
A origem: soberba x ciência
As teorias variam, disputando prestígio – e por que não dizer investimentos governamentais em pesquisas – na defesa de suas teses, conforme veremos a seguir.
A primeira visão, colonialista – data do séc. XIX. Um grupo de pesquisadores – dentre os quais se destaca o maior linguista, orientalista e mitólogo alemão, Max Müller – defende uma tese invasionista, segundo a qual a civilização do Vale do Indo teria entrado em conflito com um povo nômade e bárbaro, chamado arianos védicos. Como era considerada uma civilização de reconhecida espiritualidade e que antes já havia dominado a Pérsia, a religião védica – manifestação mais representativa dentre as tradições presentes na Índia – teria sido levada para o Vale do Indo pelos tais arianos (um povo branco, de nariz afilado). Esse suposto conflito teria acontecido por volta do século II a.C.
Mas se não havia evidências suficientes para se afirmar isso, como essa visão ganhou tanta notoriedade e se perpetuou por tanto tempo? Devia ser muito difícil ter de assumir a existência de uma cultura anterior àquela a qual pertenciam os pesquisadores (Max Müller, por exemplo). E mais: com uma cultura mais sofisticada, sobre todo o conhecimento humano? Escrituras anteriores a Bíblia? Numa língua altamente sofisticada? Não, não poderia ser aceito facilmente.
Parece razoável imaginar que o povo “nativo” do Vale do Indo não seria totalmente desprovido de espiritualidade quando da tal chegada dos arianos védicos, como um recipiente vazio que seria preenchido por uma cultura externa e até então estranha. O que existia nessa região foi chamado de hinduísmo primitivo, mais especificamente de Brahmanismo, segundo Renou (1979) apud Tinoco (2005). A despeito da tradição que essa versão alcançou, contestações futuras viriam.
Em 1921, o mundo assistiu estupefato às descobertas de vestígios arqueológicos nas regiões de Mohenjo-Daro e Harappa, às margens do rio Indo, onde atualmente se situa o Paquistão. Isso trouxe uma nova versão aos fatos, defendida por hindólogos, eruditos, estudiosos do oriente, dentre eles Feuerstein: a de que nunca houvera qualquer invasão. Os arianos, até então apresentados ao mundo como um povo nômade, seriam, na verdade, também naturais da região do Vale do Indo. Além disso, teriam convivido pacificamente com os outros povos dessa região, estabelecendo de modo gradual e natural a sua cultura sobre a desses grupos. O brahmanismo não seria, portanto, uma religião “clandestina”, à margem da tradição védica, e o sânscrito já era a língua nativa local.
Esse novo panorama permitiu inferir que a cultura védica sempre pertenceu à cultura ancestral da Índia, e que os Vedas representam o que há de mais legítimo acerca da tradições espirituais existentes nessa região. Essas hipóteses ganham força a partir dos vestígios encontrados nas escavações, os quais desconstroem a ideia da existência de batalhas, ou seja, o processo de “descontinuidade” defendido pela teoria anterior é que se dissolve.
Se não houve conflitos e se os povos co-habitavam a região pacificamente, o que ocorreu foi exatamente o oposto: uma continuidade, uma progressão espontânea no intercâmbio cultural, culminando com a predominância de uma dessas culturas sobre as demais; quanto às mudanças ocorridas no panorama geográfico da região, as escavações também comprovam que são fruto de processos geológicos naturais, e não de invasões.
O que se percebe, na verdade, é que as teorias que se apresentam são, em sua essência, inconclusivas. Poucas evidências e muita especulação traduzem melhor a discussão sobre quem chegou primeiro a essa parte do mundo.
Segundo Aghorananda (2006), os principais grupos étnicos que formaram a Índia eram os aborígenes, classificados como proto-australóides, por volta de 7000 a.C.; quatro milênios depois, em aproximadamente 3000 a.C., é a vez do Vale do Indo ser ocupado e explorado por uma civilização conhecida como dravídica. A civilização dravida é que dá origem às cidades/vilarejos ao eixo do vale Indo-Sarasvati (os dois principais rios da região); esse desenvolvimento se dá de forma natural e positiva até o período de 1800 a.C.. Nele se registra a chegada dos Arianos, não de uma só vez, mas em grupos que foram estabelecendo uma supremacia cultural e línguística (falavam o sânscrito) sobre as demais culturas. Mas tudo se caracteriza muito mais como suposições do que como fatos, pois os dados apresentados pelas correntes teóricas são incompatíveis entre si.
Se há alguma coincidência entre as teorias de formação, ela se resume ao número de fases (nove ao todo) que compõem o que hoje conhecemos como Índia; ainda assim, alguns períodos chegam a variar internamente, de 400 a 2000 anos.
O legado importa mais
Talvez devamos nos prender não às divergências entre as teorias, tampouco à literalidade na interpretação dos textos que as sustentam; afinal, o que é mais importante para a humanidade? Datas exatas que satisfariam muito mais egos do que a ciência, ou os benefícios que essa cultura trouxe para o mundo ocidental?
Da composição dos hinos védicos (pelo menos da maioria) no século quarto a.C. – período védico -, passando pelo cultivo do algodão e das estatuetas em terracota, pelo surgimento do Budismo na era Pós-Védica, o mundo foi agraciado com uma cultura de espiritualidade até então sem registro.
A riqueza do pensamento era tanta, que duas correntes se confrontam no Período Épico (1000 a 100 a.C.): dharma x sannyasa. De um lado, os papéis sociais sendo aceitos e desempenhados com rigor; de outro, a renúncia ao mundo, caracterizando uma vida de entrega espiritual completa.
Os darshana.s surgem logo em seguida, na Era Clássica, entre 100 a.C. e 500 d.C.; o Oriente protagonizou um embate intelectual entre seis escolas de pensamento que disputavam a supremacia absoluta no campo do pensamento metafísico. Disputavam, no fim das contas, a oferta de um caminho para moksha, a libertação do sofrimento.
Ainda que quiséssemos, seria pouco provável conseguirmos registrar ou simplesmente descrever toda riqueza e contribuições que essa cultura trouxe ao Ocidente. O que devemos considerar efetivamente é que recebemos da Índia um conjunto de práticas e ensinamentos que visam a nos amadurecer, a nos aperfeiçoar como seres, juntamente com um estudo constante, de escrituras e de nós mesmos, que nos conduzem ao autoconhecimento.
Glossário:
Vedas – hinos, poemas, cantos, revelações, recebidas por grandes Rishi.s em estado de meditação profunda, Era dito que eles ouviram a voz de Deus.
Rishi.s: sábios que receberam por meio de meditação todo o conhecimento acerca do ser humano, compilado em volumes chamados Vedas.
Dharma: palavra polissêmica. No contexto de uso neste texto, significa “responsabilidade”, “missão”, “papel social”.
Sannyasa: comportamento a partir do qual a vida se torna uma prática espiritual em tempo integral. Uma vida simples, normalmente de mendicância, associada a práticas espirituais intensas.
Darshana.s: escolas de pensamento do Período Clássico (100 a.C. a 500 d.C.) que tentavam responder às grandes perguntas da vida, e.g., “O que é a busca da Felicidade?”, “Será que o sofrimento é algo natural ao ser humano ou ele pode ser removido?”, “Como me libertar da sensação de incompletude que carrego?” A partir do estudo dos Vedas, cada uma dessas Escola apresentou um conjunto de respostas; algumas totais, outras parciais.
Moksha: a libertação do sentimento de limitação, o sentimento de ausência de sofrimento. O objetivo do Yoga Darshana, bem como de todos os outros darshana.s.
Referências bibliográficas
FEUERSTEIN, G. A Tradição do Yoga. 2º ed. São Paulo: Pensamento, 2001.
SARASWATI Aghorananda. Mitologia hindu. São Paulo: Madras, 2006.
TINOCO, Carlos Alberto. As Upanishads do Yoga. São Paulo: Madras, 2005.
1 Comentário
A Índia é um lugar maravilhoso, gostaria muito de um dia conhecer ela pessoalmente.
Obrigado.